BLACK IS BEAUTIFUL: O lugar do amor ao próprio cabelo na autoestima negra


Atualmente, é perceptível a valorização da estética negra nos espaços físicos e virtuais: constantemente celebramos o crespo de nossos cabelos, a tonalidade diversa da cor de nossa pele, nossos traços, nossas roupas coloridas e estampadas. Criamos um movimento coletivo de amor à negritude e expressamos em nossas múltiplas formas.

Essa reafirmação de nossa presença, ligada ao resgate do nosso passado e do enaltecimento das nossas raízes culturais pela diáspora, é uma tentativa de reinventar a nossa imagem e distanciá-la dos padrões de beleza pré-estabelecidos. Entretanto, à nível individual, nem sempre ter essa consciência racial é fácil. O processo de descobrir-se negra acontece em fases de aceitação, gradualmente.

O racismo muda a relação da mulher negra com a sua aparência e autoestima – inclusive reflete em sua saúde mental. Crescemos acreditando que jamais atingiremos o nível de beleza pautado pela branquitude. E o pior, somos levados a acreditar que estamos em um patamar de comparação do oposto, do que é feio, grotesco, sujo. O racismo, antes visto como um ódio externo vindo do outro, se internaliza e se transforma em ódio por nós mesmos. Crescemos em um constante desejo de não ser quem somos.

Até certo ponto durante a infância, eu não me considerava negra. Pode parecer até contraditório, mas minha cor não parecia ser relevante nas brincadeiras de criança. Fazia amizades com base na minha personalidade e achava que isso era suficiente. Com o tempo comecei a perceber uma atmosfera diferente, um tanto hostil, quando eu era colocada de escanteio no recreio e não entendia o porquê.

De uma hora para outra, virei chacota por causa de algum penteado, quando era impedida de ter um papel da protagonista na brincadeira ou quando não era escolhida para liderar – e sim, quando não era preterida pelos meninos da escola. Não quero entrar no mérito de reproduzir as ofensas em detalhes, mas elas doíam muito, principalmente pela falta de consciência do motivo: eu não era inteligente, esforçada, esperta, bonita o suficiente? Me sentia culpada e entrava num ciclo vicioso de não-aceitação e solidão, buscando mudar minha aparência para me encaixar. Naquela época, eu ignorei os conselhos dos meus pais, que sabiam bem o que estava acontecendo.

Como em muitos momentos da descoberta da riqueza da minha negritude, eu submergi só quando estava na faculdade, onde cumpri o que jurei secretamente durante a infância: quando eu crescer, vai ser diferente. Esse despertar veio na mesma velocidade em que as angústias dentro de mim se acumulavam e as frustrações ao não me encaixar nas expectativas das pessoas só aumentavam. Até hoje essas inseguranças me assolam.

Como superar isso? Eu te respondo: criando redes de apoio e compartilhando informações sobre amor próprio. Vou te dizer, pode até parecer uma questão de supérflua de vaidade muito simples, mas a educação tem um papel fundamental e salvador nesse assunto. Foi lendo uma série de pensadoras negras feministas que

percebi que não estava sozinha na arena de desagrado com minha própria imagem e compreendi o que me deixava nessa zona de negação do meu próprio reflexo.

Essa não é uma curta definitiva. É um tratamento à longo prazo, que necessita de dosagens mais altas de suporte familiar e de amigos que, muitas vezes, não existem ou não entendem que baixa-estima relacionada a nossa aparência também prejudica nossa saúde. Tem dias em que acordamos nos amando, motivadas, criativas, prontas para enfrentar o mundo; e tem dias que não conseguimos levantar, nos odiando por não termos controle do que nos oprime.

Em tempos de timidez e de baixo orçamento, os corredores virtuais são uma ótima alternativa para encontrar apoio e redes de debate seguras. Preciso contar que o Youtube é uma grande de ferramenta de poder e informação de/para pessoas negras? Em muitos vídeos, naquele tom de intimidade de uma conversa de bar, são compartilhadas informações nos mais variados níveis de formação e experiências reais e cotidianas. Você seus fones de ouvido e a tela do celular, ou computador. Mesmo que eu não conhecesse a Nataly Nery (do canal Afros e Afins) ou a Gabi Oliveira (do canal De Pretas), elas me confiavam suas questões sobre beleza, política, educação – e os níveis de identificação com suas opiniões e debates eram enormes. Enfim, eu não estava só.

O processo mais transformador para mim foi o da transição capilar. O cabelo sempre foi uma questão que me gerava incertezas – era quase um campo de batalha contra ele, onde eu fazia mais tentativas para me encaixar no padrão, alisando-o até o meu coro cabeludo ficar completamente danificado. E não só isso: durante a adolescência eu fugia do sol por medo de tornar minha pele mais escura, já cheguei a usar cremes de clareamento no rosto e nas mãos, seguidas vezes, esfolava minha pele. Tudo na tentativa de me tornar outra pessoa e ser aceita. Chorava todos os dias, mas pensava que, uma vez aceita, talvez eu tivesse a chance de mostrar outras coisas mais importantes sobre mim. Mas a dor que tudo isso me causava era grande.

Me baseando nessa experiência, dirigi e escrevi um curta-metragem documentário chamado “Embaraço” (2018) na faculdade. Foi algo que fiz por mim, por outras mulheres na minha mesma faixa etária e acabei descobrindo movimentos negros passados, responsáveis por essas transformações na nossa estética: usamos nossa imagem como uma forma de afirmação social de quem somos, porque para a comunidade negra o estético e indissociável do político.

O texto da intelectual feminista bell hooks “Alisando nosso cabelo” traz reflexões importantes sobre esse processo que sofri e amplifica também a discussão sobre alisar o cabelo e um contexto social sobre isso nos EUA: “durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a). Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade.”

Com essa construção intelectual, fui aceitando e reafirmando minha aparência, minha pele e, principalmente, parei de brigar com meu próprio cabelo. E o abracei e me transformei – ainda me transformo, todos os dias. Como militante, usei minha imagem como uma ferramenta de poder e, apesar de muitos olhares incômodos, me sinto confortável em minha própria pele e, de quebra, sustentando uma coroa.

Mirtes SantanaAuthor posts

É roteirista, assistente de produção executiva e cineasta. Dirigiu e roteirizou os curtas Embaraço (2018) e A Mulher do Espaço (2019). Participou da sala de roteiros da série Escola de Gênios do Canal GLOOB e foi vencedora do Concurso de Cinema Feminino do Instituto Dona de Si e Arezzo em 2019.

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