NÃO CONSEGUIMOS RESPIRAR:


Um retrato do genocídio negro assistido pelo Estado

Sinto o soltar de fôlego da minha mãe quando chego em casa à noite. É um suspiro de alívio: o ar se esvai junto com um mar de preocupações pela minha ausência. Sinto, o coração dela desacelerar enquanto desço as escadas, abro a porta e a vejo afastar os maus pensamentos que surgiam por conta da minha demora.

Uma olhada disfarçada no meu estado indica em seus instintos que estou bem. Me dá boa noite e vai para o quarto dormir. O perigo constante das violências que somos estatisticamente mais propensas a sofrer assim que pisamos fora de casa, deixa minha mãe alerta, aflita. Mas, hoje, eu voltei pra casa, sã e salva.

Toda vez que vemos um segurança caminhando em nossa direção, prendemos a respiração torcendo para que passemos despercebidos. Toda vez que vemos imagens da população negra sendo violentada no noticiário, prendemos a respiração porque nos tornamos conscientes da nossa própria vulnerabilidade. Toda vez que cruzamos o limite da nossa casa segura, deixamos entes queridos à espera, eles prendem a respiração, pensando em nossa proteção. Prendemos a respiração pela ansiedade anunciada que pode definir os próximos segundos de nossas vidas.

Essa ação é precedida de indignação, tristeza, dor, medo. Seguramos a respiração involuntariamente num tom de uma prece, torcendo em vão para que isso nos impeça de sofrermos agressões, numa tentativa fantasiosa de tornarmos invisíveis, de poder voltar no tempo e desfazer o que quer que tenhamos feito para justificar os olhares de desconfiança do outro sobre nós. E quando voltamos para casa, respiramos de alívio.

São incontáveis as perdas de vidas negras em diversos locais do mundo, de faixas etárias, de identidade de gênero, orientações sexuais, sexualidade. Essas pessoas eram membros de uma família, tinham amigos, pertenciam a uma comunidade. Eram amadas. Amavam. Respiravam. E então, não mais.

Nossa respiração é perigosa. E somos sufocados pelos joelhos do Estado.

A população negra é a que mais morre de COVID-19. É a que mais está propensa a ser contaminada por esse vírus. Pessoas negras as primeiras na lista de demissão por conta da pandemia. São as que tiveram seus pequenos negócios fechados, faturam menos, que mais morrem de vítimas da transfobia, da homofobia e do feminicídio. Pessoas negras são maioria no sistema carcerário, que menos tem acesso ao mercado de trabalho, que menos tem acesso ao ensino superior, que menos tem saneamento básico. Que mais está desempregada e que vive m situação de rua. Somos líderes em indicativos sociais de desumanidade.

Vidas negras são um índice constante do quanto o racismo é perverso e uma prova de que, nossas vidas, na verdade, não importam.

Essa suposta mobilização, através do quadradinho preto em muitas redes sociais é um retrato da nossa própria invisibilidade e apagamento de nossas lutas. Mas a grande Elza Soares decidiu tomar uma atitude diferente em sua página pessoal e resumiu, em poucas palavras, meu sentimento com isso: “todo protesto é valido e não existe maneira mais correta de fazer, mas eu não vou esconder meus negros com uma tarja preta”.

No meio de hashtags, likes e compartilhamentos, foi perdida uma oportunidade de celebrar, mostrar e falar sobre a luta negra. Essa pauta que afeta diretamente a população negra todos dias pela nossa sobrevivência, se contrasta com as ações da branquitude. Nas palavras de Roxane Gay, intelectual e escritora estadunidense: “as pessoas negras compartilham a verdade de suas vidas, e as pessoas brancas tratam essas verdades como exercícios intelectuais.” Raramente na mídia vemos a resolução de crimes de racismo e essa dor impune fica nas famílias esquecidas, silenciadas.

Vi muitas vezes meu pai ser parado em blitz, revistado, humilhado. De cor, ele já sabe quais são os movimentos metódicos e aposto que sente vergonha ao ser sujeitado a isso, hoje aos sessenta e dois anos. Vi um medo em seus olhos por qualquer movimento brusco que poderia comprometer a sua vida, ou a nossa que o acompanhava, apenas por ter um perfil suspeito – ser homem negro.

Já estamos há mais de três meses em algum tipo de isolamento social e a sensação de sufocamento psicológico e físico é iminente, pelos efeitos da violência exposta na mídia. Estão acontecendo tentativas de abertura da economia de forma prematura, mesmo com os números de infectados e de mortos pelo vírus existindo. Sendo moradora de uma das periferias mais populosas de São Paulo, além de presenciar a falta de noção das pessoas, essas vidas perdidas e noticiadas não criam a prevenção nem consciência necessárias. Simplesmente não sensibilizam uma luta coletiva pela nossa segurança e saúde.

Temos uma liderança máxima que defende o porte de armas, a destruição de quilombos no Brasil, que fala com um desprezo sobre as mortes durante a pandemia. Além disso, desrespeita todos os protocolos de prevenção implementados para a contenção da doença e desrespeita o isolamento social frequentemente. Dizer que isso não incentiva um genocídio negro assistido não me parece nem um pouco ingênuo.

Você pode ter realmente notado nas propagandas da televisão e movimentos em redes sociais amenizadores, há muito tempo dizendo que estamos juntos, que vamos passar por isso mais fortes, vamos voltar à normalidade em breve, que nós podemos contar com os as entidades privadas para empréstimos e não precisamos nos preocupar com nada. Mas não estamos juntos e não vamos sair desta os mesmos.

Escrever esse texto é muito doloroso e cansativo. Sinto que as palavras me fogem e que não fazem jus ao falar desse momento perigoso e de impotência. Me sinto presa num filme de horror em looping. Não precisamos mais prender a respiração porque já não conseguimos mais respirar.

Mirtes SantanaAuthor posts

É roteirista, assistente de produção executiva e cineasta. Dirigiu e roteirizou os curtas Embaraço (2018) e A Mulher do Espaço (2019). Participou da sala de roteiros da série Escola de Gênios do Canal GLOOB e foi vencedora do Concurso de Cinema Feminino do Instituto Dona de Si e Arezzo em 2019.

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