A ÚNICA MULHER NEGRA NA FIRMA


Reflexões sobre os desafios e frustrações da profissional preta invisibilizada no ambiente de trabalho

Gostaria de chamar atenção sobre esse tema por uma série de razões: a relação da mulher negra com o mercado de trabalho é de exclusão, principalmente em empresas corporativas. Contabilizando as desigualdades salariais e a ausência dessas profissionais em cargos executivos, de gerência ou chefia, há também a relação emocional de solidão e de isolamento com quem – raramente – consegue chegar nessas posições.

Na maioria das vezes, os obstáculos começam na hora da entrevista de emprego.

Numa mesa de bar antes do recorrente isolamento social, enquanto conversávamos sobre nossas carreiras, uma amiga me perguntou por que eu estava sendo entrevistada apenas para vagas como assistente e não em uma função sênior, argumentando que “muitos de seus amigos” só haviam sido assistentes em apenas um projeto e já subiram de nível rapidamente. Olhei para ela, respirei fundo e perguntei: “quantos desses amigos são negros?”. E eu sabia a resposta.

Apesar de inocente, a pergunta foi violenta porque sugere que nessa equação eu, como mulher negra, tenho as mesmas chances de uma pessoa branca para uma mesma vaga. Nessa conta não se colocaram os elementos do racismo estrutural e institucional, coeficientes que não tenho controle e que me impedem de ter mais oportunidades de trabalho com salários iguais aos da maioria dos meus colegas brancos.

Em recente pesquisa da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) divulgada pelo IBGE a diferença salarial média entre uma mulher negra e um homem branco é de 60% podendo chegar a 80% em alguns cargos. Mesmo com mais da metade da população se autodeclarando preta ou parda, apenas 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por negros, em pesquisa feita pelo Instituto Ethos e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Já trabalhei em setores operacionais de uma gráfica e de uma fábrica têxtil, locais em que se exigiam apenas formação básica. Nessas funções, eu era apenas uma funcionária nova numa linha de montagem contínua e facilmente descartável. Todos meus colegas de trabalho eram negros, dividíamos um espaço de trabalho braçal, recebíamos um salário mínimo. Antes de entrar no audiovisual, área na qual sigo trabalhando há 3 anos, nunca consegui trabalhos em empresas corporativas porque, quando me aplicava para essas vagas, sentia na pele o olhar das pessoas. E é muito doloroso.

Tive sorte ao nascer em uma família que, mesmo humilde, se esforçou para que eu ingressasse na faculdade – como cotista – e, com um diploma de graduação, ter uma colocação melhor no mercado. Ainda assim, mesmo com ensino superior, cursos, especializações, experiência em mostras de cinema, sets de filmagem e salas de roteiro, saber três idiomas diferentes, ainda percebo o olhar de surpresa das pessoas ao me chamarem para a entrevista presencial, após um telefonema ou uma troca de e-mails

em que minha raça não estava escrita no meu CV. Para os recrutadores, meu currículo não parece se associar com a minha cor.

Você pode me afirmar que atualmente há muitas empresas revisaram as políticas de contratação e pautam pela diversidade de seus funcionários. Concordo com você. Essas ações afirmativas tanto em empresas como em universidades são tentativas de sanar esse desequilíbrio social.

Eu, inclusive já fui contratada em diversos projetos cujo “pré-requisito” era ser negra. Só que, do primeiro até o último dia do meu contrato, eu era a única negra nesses espaços. Para essas políticas existe um limite de chances, de vagas no mercado e competimos uns contra os outros por elas.

Talvez, um dos motivos mais frustrantes sendo essa única pessoa negra na sala seja a ideia de carregar um único assunto em que a sua opinião é realmente relevante e na qual você se torna uma consultora especial: raça. Vou te atentar para uma coisa: somos negros, mas somos diferentes, temos alinhamentos políticos diversos. Temos tons diferentes de pele, texturas diferentes de cabelos, gostos, estilos, talentos. Não me nego em ter discussões saudáveis sobre as pautas de resistência do meu povo, mas não acho que esse deveria ser o único motivo de eu estar ali, ocupando aquele espaço em primeira instância. Minhas habilidades não são suficientes para isso?

Quando você, única mulher negra, trabalha em um ambiente majoritariamente branco tudo soa muito diferente, porque a situação de invisibilidade é dupla: não existe por parte das empresas processos de maior integração de profissionais negros em outros níveis hierárquicos e, quando existem, se restringem a poucas oportunidades a uma minoria que vive com as mãos atadas em termos de contratação.

Podemos ficar aqui e citar cases de sucessos como a Oprah Winfrey, a Rachel Maia, a Shonda Rhimes, e tantas outras mulheres pretas em cargos executivos e de gerência. Mas elas não podem ser exceções ou um mero exemplo de meritocracia, nessa onda poderosa e crescente de profissionais negras qualificadas e prontas para mostrarem do que são capazes. Você precisa ter em mente é aquela mulher negra de rosto anônimo e que há anos está estagnada no mesmo cargo, nunca se tornou gerente, showrunner, CEO, diretora executiva. Existem mulheres que nunca sequer são contratadas. Como ajudar outras mulheres a subirem de nível com integração? E como criar redes de apoio para a solidão dessas mulheres?

Não sei se você, cara leitora preta, já trocou um olhar de confidência com a outra pessoa negra nos corredores da mesma empresa e sentiu um misto de surpresa, alívio e solidariedade. Você se sentiu de cabeça erguida por ela também estar ali, mesmo sem trocar uma palavra. Esse apoio invisível e vitorioso muda tudo.

Quando alguns poucos de nós conseguimos ultrapassar essa barreira, vou confessar que é algo poderoso. Dá um certo orgulho por ter chegado tão longe. E eu tenho certeza de que muitas outras mulheres negras são profissionais competentes, qualificadas, com experiência e habilidades estão batalhando por essa oportunidade.

Nos dar uma chance é um risco?

Mirtes SantanaAuthor posts

É roteirista, assistente de produção executiva e cineasta. Dirigiu e roteirizou os curtas Embaraço (2018) e A Mulher do Espaço (2019). Participou da sala de roteiros da série Escola de Gênios do Canal GLOOB e foi vencedora do Concurso de Cinema Feminino do Instituto Dona de Si e Arezzo em 2019.

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